CARTA CAPITAL - CARTA NA ESCOLA
edição 91
outubro de 2014
Que impacto tem o computador e outros artefatos tecnológicos no
desenvolvimento e na formação humana? São centenas as pesquisa sobre a
interação homem e tecnologia. Uma temática muito pesquisada é a
interação com os equipamentos tecnológicos com tela. A exposição à tela
iluminada (TV, computador, celular, ipad, etc), segundo vários
pesquisadores, pode impactar negativamente o desenvolvimento humano.
Tanto é que a Associação Nacional de Pediatria dos Estados Unidos
recomenda que crianças até dois anos não sejam expostas à tela.
Razão: a tela plana interfere no desenvolvimento da visão que acontece
ao longo dos dois primeiros anos de vida. Um outro motivo: a limitação
que o uso dos equipamentos tecnológicos acabam por acarretar no
desenvolvimento da criança, pelo fato de que, frente à televisão ou
computador, ela não realiza outras atividades básicas que garantem a
formação de memórias a partir das experiências com os outros sentidos e
dos movimentos do corpo no espaço. Além, naturalmente, de experiência
com os objetos e pessoas do mundo real.
Há muito que pesquisar sobre o uso da tecnologia, porém é sempre bom
lembrar que todo e qualquer equipamento tecnológico faz parte da cultura
humana e que o cérebro se desenvolve em função da cultura. O
desenvolvimento do cérebro é de natureza biológica e cultural. O cérebro
se forma, se desenvolve e amadurece com base na genética da espécie e
pelas experiências de vida de cada um.
O cérebro tem enorme plasticidade, ou seja, é capaz de se organizar e
reorganizar continuamente durante toda a vida do ser humano. A
plasticidade é maior na primeira infância, mas se mantém durante a
adolescência e toda a vida adulta. Esta é uma característica importante
do desenvolvimento: a possibilidade de modificações e mudanças a
qualquer idade.
Até na ocorrência de acidentes cerebrais, lesões ou outras condições
biológicas adversas, o cérebro é capaz de se reorganizar funcionalmente.
Oliver Sacks escreveu extensivamente sobre casos clínicos de patologias
e acidentes cerebrais e a capacidade de reorganização do cérebro
apresentada por muitos pacientes e inclusive de sua experiência pessoal,
como a perda de visão de um olho (O olhar da mente, de Oliver Sacks).
Em uma pessoa cega, por exemplo, o cérebro se modifica desenvolvendo
mais os sentidos do tato e da audição, dois sentidos em que o cego se
apoia para percepção e ações que seriam próprias da área do córtex
visual.
Nosso cérebro é, portanto, dinâmico. Conforme nos diz Kandel, prêmio
Nobel de Medicina em 2000 (pela descoberta sobre a formação e
funcionamento de memórias de curta e de longa duração): “O cérebro não é
estático, ele é plástico!” Ele responde às mudanças nos contextos em
que a pessoa vive ou frequenta (documentário “Em busca da memória”).
Ao longo da história cultural do ser humano as invenções, aquisições e
produções em cada período histórico suscitam respostas ou diferenciações
no cérebro e provocam mudanças significativas em seu funcionamento.
Vejamos o exemplo da escrita. A escrita é uma invenção, é um produto
cultural criado pelo ser humano. Não há no cérebro uma área destinada a
aprender a ler ou a escrever, como acontece com a fala.
Para ler e/ou escrever, o cérebro passa por um processo de mudança
formando redes neuronais específicas para compreender os significados ao
se ler um texto e para criar significados quando se escreve um texto.
Isto acontece precisamente porque, como observamos, não há uma área
específica no cérebro para a aprendizagem da leitura e da escrita.
Dehaene, neurocientista francês, um dos maiores especialistas em
cérebro e escrita, em seu livro Neurônios da Leitura, esclarece que “ um
dos efeitos maiores da escolarização é o aumento da capacidade da
memória.” Segundo ele “ há ainda modificações anatômicas como é o caso
do corpo caloso que se espessa na pessoa que aprende a ler.”(Dehaene, Neurônios da Leitura, 2012, pg. 227).
A invenção da escrita, a invenção da imprensa e agora a invenção de
novos instrumentos tecnológicos e novos usos da tecnologia na vida
cotidiana causam impacto na história evolutiva da espécie. E, como
mostram as pesquisas da neurociência acumuladas nas últimas décadas, há
certamente um impacto no desenvolvimento e funcionamento do cérebro,
porém, não a ponto de que, após cinco mil anos de existência da escrita,
o cérebro dispense ensino, exercício e sistematização para se tornar
um cérebro capaz de ler e de escrever.
O cérebro se modifica anatomicamente, mas destas modificações não
resultam que ler e escrever se desenvolvam naturalmente como a fala. A
leitura e a escrita precisam ser ensinadas e é necessário muito estudo
para que uma pessoa, em qualquer idade, de aproprie da estrutura básica
do sistema linguístico de qualquer língua escrita, alfabética ou
ideográfica.
Para ler, diz ele, há que se formar uma nova estrutura no cérebro, que
ele chamou de “boîte aux lettres” (tradução livre, caixa de letras).
Esta estrutura possibilita aprender a lidar com o sistema simbólico da
escrita, em qualquer língua. Ela é resultante da plasticidade do cérebro
e revela que uma invenção cultural impacta e promove modificações no
cérebro. É o que acontece, também, com instrumentos tecnológicos e com o
uso da tecnologia.
Tecnologia e cérebro
Tecnologia sempre houve na espécie humana: o desenvolvimento
tecnológico se realiza pela transmissão cultural em que uma geração
passa à seguinte os conhecimentos, metodologias e instrumentos.
O extraordinário desenvolvimento da tecnologia do século XX se deu,
primeiramente, pela ampliação do acesso à escolarização. E trouxe, como
consequência, situações novas não experimentadas pela espécie humana
anteriormente, como, por exemplo, o domínio no manejo dos aparatos
tecnológicos: hoje os mais novos, crianças e jovens, aprendem e usam
instrumentos tecnológicos com maior destreza do que os adultos. Maior
destreza não significa, no entanto, maior conhecimento e maior
capacidade de formar conceitos e trabalhar mentalmente com informações
das áreas de conhecimento formal.
Daí podemos inferir que novos produtos culturais têm um impacto no
cérebro e não poderia ser diferente pois o desenvolvimento do cérebro é
função da cultura, incluindo, naturalmente, os contextos contemporâneos
disponíveis ao ser humano, presenciais e à distância.
Publicado na edição 91, de outubro de 2014